No tratak, como me ensinaram, deve-se focar no ponto dentro de um círculo até que o círculo desapareça depois de tanto ficar fora de foco. É o efeito “blur”. O desfoque, onde os limites das formas perdem a nitidez.
Nas aquarelas é fácil reproduzir o efeito, basta pintar sobre o papel encharcado e ainda acrescentar mais água. As manchas de cores se misturarão, não havendo mais começo e fim dos espaços.
No pouco que estudei de Programação Neurolinguística (PNL), que é uma pseudociência, havia um conjunto de exercícios chamados Terapia da Linha do Tempo, cuja prática possibilitaria desfocar algumas lembranças e dar nitidez para outras. Focar no que importa, como o ponto no centro do círculo.
Talvez seja um placebo, mas comigo a terapia da linha do tempo parece funcionar às vezes. Não sei se é bom diluir a memória desse jeito, tornando certa coisas tão etéreas quanto sonhos que esvanecem ao acordar.
Seja o que for, é libertador em alguns aspectos. Em outros nem tanto. É difícil diluir algumas pedras, principalmente aquelas que Sísifo rola morro acima.
Li que no folclore Irlandês, e da Escócia também se não me engano, os lagos com uma ilha no centro eram locais sagrados, pois a ilha seria uma espécie de entrada para o mundo dos Sídhe (elfos, fadas, etc.)
O Castelo Kilchurn, na Escócia, não fica numa ilha, mas as brumas parecem isolá-lo da terra, ocultando as montanhas ao fundo, desfocando seus limites e nem seu reflexo, no lago Awe, ousa tocar-lhe.
E o castelo, mesmo que de pedra, parece se dissolver lentamente num limbo cinza esbranquiçado. Como nas aquarelas, ao se misturar todas as cores com muita água, gerando um único tom: o de água suja.
“Eu não quero mais mentir
Usar espinhos que só causam dor
Eu não enxergo mais o inferno que me atraiu
Dos cegos do castelo me despeço e vou
A pé até encontrar
Um caminho, o lugar
Pro que eu sou”
- Cegos do Castelo, Nando Reis / Titãs
E se uma lembrança, ao se esvanecer, começa a se misturar com as memórias que a circundam? Então a narrativa muda. “As coisas não foram bem assim”.
Mas as lembranças são sempre reconstruídas no presente. Cada vez uma nova versão. Se o passado é uma espécie de base onde nosso Eu de hoje é sustentado, então, em parte, ele é uma mentira. Um castelo de areia, frágil, pronto para ser desconstruído e re-embaralhado de forma diferente, de acordo com a necessidade do presente.
Eu gostava desses papos que passado e futuro não existem, e só o presente é real. Mas hoje me parece coisa de animais. De que serviria a consciência se só existisse o presente?
Mas o ponto central disso tudo é justamente o fato de que o que eu desejo é o contrário do que o tratak propõe. Eu quero focar nas margens e esquecer o que já me foi mais importante. Nisso a PNL não tem me ajudado.
“Mas então porque eu finjo
Que acredito no que invento
Nada disso aconteceu assim
Não foi desse jeito
Ninguém sofreu
E é só você
Que provoca essa saudade vazia
Tentando pintar essas flores com o nome
De amor-perfeito e não-te-esqueças-de-mim”
- Acrilic on Canvas, Legião Urbana



