ACADÊMICOS - FILOSOFIA

Fundamentalismo e Busca por Identidade

O SER HUMANO NA CONTEMPORANEIDADE: FUNDAMENTALISMO E A BUSCA POR IDENTIDADE

“A passagem dos séculos me assombra. Para onde irá correndo minha sombra Nesse cavalo de eletricidade?!” perguntou o poeta Augusto dos Anjos (2002), no começo do século XX. Sua dúvida reflete a preocupação do homem com os avanços tecnológicos, as constantes atualizações, as perdas de referências e a consequência disto tudo com esvanecer de um sentido de identidade. E neste vazio que o homem não compreende, por não alcançar a velocidade das mudanças no mundo, ele muitas vezes preenche com ideais já fundamentados de valores pré-estabelecidos que lhe dão algum sentido de existir, respondendo as questões existenciais como: quem sou, onde estou e para onde vou. É neste cenário de constantes mudanças, muitas delas vindas das descobertas da ciência e das inovações tecnológicas, que o homem moderno se percebe rumo a uma pós-modernidade.

A modernidade é caracterizada pela razão, pela ciência e os avanços desta nos campos tecnológicos. A promessa positivista de uma emancipação do homem pela ciência não se cumpriu no século XX, pelo contrário, em alguns aspectos a ciência se mostrou capaz de horrores tecnológicos como nas duas guerras mundiais, a bomba atômica, e também acidentes nucleares e problemas ambientais frutos de uma industrialização selvagem. A redução das distâncias e aproximação das culturas, frutos da globalização e das sociedades em redes virtuais, trouxeram também a perda de identidade do indivíduo, que viu seus referenciais e valores sendo confrontados e substituídos por outros.

Neste contexto, de um mundo mais dinâmico, ou como sugere Bauman (2001), de uma modernidade que se liquefaz desde sua concepção, o homem por outro lado busca um sentido de existência mais sólido, um chão que o sustente e fundamente a construção de seu projeto de vida. Assim os ideais fundamentalistas, sejam eles religiosos, políticos, ou econômicos, aparecem com seus discursos conservadores como uma promessa de ser esse chão firme onde o indivíduo poderá se edificar. Prometem a garantia de uma Verdade absoluta contra um mundo de mentiras, mas que por sua vez geram intolerância e até violência contra todos que discursam no sentido contrário.

O fundamentalismo religioso é uma das formas mais conhecidas de fundamentalismo e está sempre associado ao comportamento violento, “é um movimento de autodefesa de pessoas e grupos sociais que não conseguem fazer uma leitura mais ampla das transformações típicas da história humana.” (DEMARCHI; SILVEIRA, 2015, p.100). Para Chauí (2006), o fundamentalista religioso cria um imaginário para contornar uma concepção de mundo que ele não compreende e apela para duas forças transcendentes: a divina e a política, esta última na figura do governante autoritário. Desta forma, inserindo-se na política, o discurso religioso sai do campo privado e volta para o público, freando discussões como aborto, legalização de drogas e casamento gay.

Por outro lado, diferente de quem busca o fundamento sólido para se construir, essa liquidez da contemporaneidade, percebida nas rápidas transformações tecnológicas que mudaram a forma do homem se relacionar no mundo, é percebida na construção de identidades que são constantemente atualizadas. Há uma necessidade do homem contemporâneo de se reinventar o tempo inteiro, como afirmam Demarchi e Silveira (2015).

Esse atualizar constante é o que Lévy (2011) define como virtualização, explicando que virtual é tudo que existe em potência, mas que não se concretiza por causa das atualizações que impedem o projeto de um futuro. Essa experiência de vida vinculada somente ao presente faz com que nossos referenciais sejam também transitórios e nossos valores inconstantes. “Volátil e efêmera, hoje nossa experiência desconhece qualquer sentido de continuidade e se esgota num presente vivido como instante fugaz.” (CHAUI, 2006, p.127)

Na busca de uma construção de identidade, mesmo sem abraçar os ideais fundamentalistas, o homem se agarra a conceitos ditados por uma sociedade de consumo, que cria um sentido de pertencer a determinados grupos. O indivíduo passa a se definir pelas marcas que consome. O que nos remete ao conceito de má-fé da filosofia existencialista de Jean-Paul Sartre, pois esta nada mais é do que a negação da liberdade do indivíduo de se fundamentar em si mesmo, em suas próprias ações. A identidade, diz Reynolds (2013, p. 110), “nunca é dada, mas sempre deve ser continuamente criada em nossas ações e não em algum fato de nossas circunstâncias”.

Muito possivelmente vivemos o período de transição entre o moderno e o pós-moderno e nesta zona intermediária convivemos com ambos os aspectos, que fazem do homem contemporâneo um ser em conflito existencial. O homem se vê pressionado a acompanhar as transformações do mundo em uma constante reinvenção de si mesmo que se adapte a cada novo cenário, seja este na esfera pública ou privada, na econômica, na política, na familiar, na profissional e na religiosa. E ao mesmo tempo em que se vê tão fragmentado, sem capacidade de definir um projeto de um existir, ele busca algo que o defina, que o fundamente e que o faça ser o mesmo em cada uma daquelas áreas. Para que possa se reconhecer. E nesse aspecto, os ideais fundamentalistas, sejam eles políticos, religiosos ou econômicos, aparecem como uma alternativa mais fácil do que responder livremente por sua própria existência.


REFERÊNCIAS

ANJOS, Augusto dos. Eu e Outras Poesias. Porto Alegre: L&MP, 2002.

CHAUÍ, Marilena. Fundamentalismo religioso: a questão do poder teológico-político. Filosofia Política Contemporãnea: Controvérsias sobre Civilização, Império e Cidadania, Buenos Aires, 1 ed., p.125-144, abril. 2006. Disponível em: < http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/secret/filopolconbr/Chaui.pdf >. Acesso em: 11 out. 2015.

DEMARCHI, Luciana; SILVEIRA, Anderson da. Cenários Contemporâneos: Livro Didático. Palhoça: UnisulVirtual, 2015.

LÉVY, Pierre. O que é o Virtual? Tradução de Paulo Neves. 2 Ed. São Paulo. Editora 34, 2011.

REYNOLDS, Jack. Existencialismo. Tradução de Caesar Souza. Petrópolis: Vozes, 2013.

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