Bom filósofo não é aquele que te traz respostas, mas aquele que te deixa com uma pulga atrás da orelha. Byung-Chul Han, filósofo Coreano, tem sido um dos meus autores favoritos nos últimos anos. Extremamente crítico aos modos de vida da contemporaneidade, ele tem me trazido ideias novas sobre alguns conceitos antigos.
Esses dias ouvi um podcast sobre ele e sobre um de seus livros: Psicopolítica – O neoliberalismo e as novas técnicas de poder.
Basicamente a ideia é de que o modo de vida liberal perverte e explora justamente o que tanto defende: a liberdade do indivíduo. No liberalismo a liberdade é usada como meio de dominação e manipulação. Torna-se, ironicamente, uma forma de coerção.
Existe a ideia de que somos livres, somos um projeto de liberdade. Mas essa liberdade é determinada pelo meio em que vivemos. Nossas escolhas estão sempre limitadas por imposições do mundo e da vida. A crença de que a liberdade é plena vem do próprio sistema liberal, onde essa ideia de liberdade é atrelada a uma ideia de culpa, pois somos livres dentro de um conjunto de crenças que nos submete a imposições pessoais, uma busca frenética por auto-realização.
No conceito geral de liberdade, visto em filosofias como o Existencialismo, há uma ideia de angústia, surgida pela dúvida diante de uma escolha. Sabemos que somos livres quando sofremos ao termos que escolher um caminho para seguir. Trata-se de uma escolha imposta pelo mundo, pela vida. Uma escolha externa, que deixa claro quais são os limites. Sabemos o que há diante de nós para decidirmos. Mas quando a escolha é interna, uma auto-imposição, nós desconhecemos esses limites. Nós acabamos impondo para nós mesmos um conjunto de coerções, cujos frutos são as doenças psíquicas como depressão, ansiedade, burnout, etc., coisas que surgem nos indivíduos que cobram muito de si mesmos. A liberdade deveria ser a total ausência de coerções.
Byung-Chul Han chama isso de crise da liberdade, onde o sujeito se torna escravo de si mesmo, ou empreendedor de si mesmo, bombardeado por discursos que dizem que ele é responsável por por sua vida e sua construção, ao mesmo tempo que ele é preso em um modo de vida que totaliza o trabalho, pois se o quanto ganha é definido pelo quanto trabalha, o indivíduo que quer ter mais, precisa trabalhar mais, limitando sua existência numa vida sem gozo, de experiências pobres, onde o lazer se resume em escolhas diante da tv ou internet. Ao empreendedor de si mesmo lhe falta tempo para família e amigos.
O filósofo, de formação nas escolas de pensamento alemão, lembra que as palavras amizade/amigo e liberdade tem a mesma origem etimológica no alemão. Ser livre é estar entre os iguais, entre amigos, gozar de tempo entre eles. Ser feliz é realizar-se em grupo, mas o sujeito escravo de si mesmo não se relaciona com os Outros pois compete com eles constantemente, algo que só favorece o sistema.
Karl Marx, que dizia que a liberdade era condição fundamental para amizade, sonhava que a crise do capital traria uma revolução do proletariado, mas isso não ocorre, e provavelmente nunca irá ocorrer, pois o capitalismo se alimenta da própria crise. Saímos do industrial para entrarmos no digital, por exemplo. E o indivíduo, empreendedor de si mesmo, sempre competindo com o outro, jamais se enxergará como parte de uma classe. E jamais irá se revoltar contra um sistema externo, pois acredita que tudo o que ocorre de ruim na sua vida é de sua responsabilidade. Sua única luta é interna, consigo próprio. Assim o conceito de classe morre no indivíduo.
A palavra proletariado vem de prole, que significa filhos. Proletariado era o sujeito que tinha família, filhos, para oferecer como garantia de força de trabalho no futuro. Mas o sujeito de desempenho, escravo de si mesmo, nem filhos tem, pois precisa estar constantemente se aprimorando. Passou dos 30 e continua estudando para ser um trabalhador melhor, competir melhor no mercado e alcançar seu ideal de sucesso profissional. Mas, como não há lugar para todos no topo do sucesso, caso o sujeito fracasse em sua jornada, ele jamais se reunirá com os outros fracassados, pois a culpa, em sua crença, lhe será somente sua e não do sistema. Assim o sistema nunca é enfrentado e por isso as coisas não tem como melhorar.
O capitalismo nos oferece um sonho igual para todos, o de sermos donos de algum capital. Mas sabemos que não há lugar para todo mundo. Há quem vença barreiras, cujas histórias se tornam inspiradoras, mas não podemos considerar excessões como exemplos a serem seguidos. Fazer isso é alimentar ainda mais a ideia de que o sistema que domina o mundo não tem sua parcela de culpa.
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A própria ideia de sonho já está errada, pois ela tira o objetivo do plano material e o transcende, colocando o capital num plano religioso. Antigamente a política era muito ligada à moral religiosa. Na modernidade houve uma ruptura, uma falsa ruptura, pois o deus religioso foi substituído pelo deus do mercado. No cristianismo Deus retem a culpa, que tem a ver com dívida, ser culpado é estar em dívida com Deus. Jesus morreu na cruz para nos libertar de nossas culpas. Mas o deus mercado não nos liberta ele nos deixa mais endividados, um deus que nos faz buscar a culpa.
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Ainda sob a falsa ideia de liberdade do liberalismo, existe a internet, que surgiu como a promessa de um lugar de total liberdade. Trata-se de uma grande ilusão, pois hoje podemos ver o quanto ela é controladora e vigilante. O autor compara com o Panóptico do Foucault, um sistema de vigilância onde todo mundo vigia todo mundo, mais ou menos como no livro 1984.
A transparência, que surge como palavra de ordem de uma ética, é também uma sutil forma de coerção. Auto-exposição, a ideia de compartilhar informações privadas dentro de uma rede onde todos vigiam todos, é uma forma de achatamento das individualidades. Uma forma de colocar todos no mesmo plano, todos iguais. Isso mata a alteridade, que é a compreensão de que o outro é diferente. A auto exposição mata nossa interioridade. Quando somos transparentes de forma passiva eliminamos nosso Ser. Ou seja, na crença de sermos livres e indivíduos nos tornamos escravos iguais, sem personalidade, um mundo em conformidade, como em 1984. Todos competindo uns com os outros, não para serem diferentes, mas para terem mais. Diferentes pelo ter e não pelo ser. O Capital define separações materiais e não personalidades individuais.
Isso já se mostra afetando questões políticas, pois o sujeito não pensa como indivíduo, ele apenas adere ao grupo. Ele não traz a ideia para seu íntimo, ele apenas reage a ela (curtindo e compartilhando). De construtor da sociedade, o sujeito se torna um mero consumidor da mesma. Passivo, reclamando de governos ou reclamando de quem reclama deles.
A transparência acabou com o voto secreto, direito garantido por lei, mas hoje fazemos questão de expor em quem votamos, como fã que consome e veste camisa de banda, por pura razão estética – gosto! Lutou-se pela privacidade, mas parece que agora obriga-se a transparência. Tudo isso, dentro de redes sociais, resulta em dados que alimentam inteligências artificiais, algoritmos que nos prendem em bolhas do pensamento igual, que propositalmente alteram nosso humor, impões nossas escolhas matando uma ideia de real liberdade e a substituindo por escolhas mecânicas, tornando o livre arbítrio cada vez mais pobre.



